O presente impõe formas.
Sair dessa esfera e produzir outras formas constitui a criatividade.
Hugo Hofmannsthal
Antes da pandemia, a criatividade estava, de certa forma, escravizada, obscurecida pela sociedade que privilegia a prática sistematizada. Aspectos objetivos do trabalho tais como, baixos salários, carga horária extensiva e intensiva, baixo quantitativo de trabalhadores e de materiais, sobrecarga de trabalho, sempre dificultaram a geração da criatividade tão necessária à sobrevivência.
É fato que o contexto onde o trabalho se realiza e o produto dele é gerado sempre foi cercado de ordem, do cultivo obsessivo do sistemático, com poucas possibilidades para o pensamento eruptivo, que admite o imprevisto, a ideia nova, dando espaço para a geração da criatividade uma vez que ela não é compatível com um contexto cercado de ordem acentuada, porque o sistemático tem as mesmas misérias de qualquer sistema: tem como horizonte máximo o seu próprio horizonte.
Como a organização da criatividade decresce em favor de uma cultura repressiva, essencialmente interessada na dominação de alguns sobre os outros, ela é salvaguardada por medidas que procuram neutralizá-la, pois a sua existência implica em possibilidades de superação da sistematização. O que se espera da criatividade é que o seu potencial crítico e transformador seja reconhecido, socializado, com o intuito de suscitar mudanças naqueles que criam e nos que têm o privilégio de saborear a criação.
Criatividade é inventar, experimentar, correr riscos, quebrar regras, se divertir e permitir a si mesmo cometer erros. Como diz Steve Jobs, “Criatividade é a arte de conectar ideias”. Dentro de nós sempre tem algo criativo, basta pensar, planejar e produzir, como afirma Felipe Teles.
Nesta pandemia, a criatividade tem sido uma das palavras mais usadas. Como sinônimos cito: inteligência, talento para criar, inventar, inovar, quer no campo artístico, quer no científico. Algumas explicações para a sua ênfase, neste momento, tem sido: o desemprego que assola o país desde o início desta pandemia e permanece neste início de 2021; o auxílio emergencial que durou pouco tempo, pois já se foi, e a forma como poderá retornar é contestável. O mais difícil: muitos perderam a vida em decorrência da Covid 19.
Nesta longa pandemia, alguns encontraram formas alternativas para continuarem a luta do dia a dia, ou seja, lançaram mão da criatividade, gerada no cotidiano, para dar cor à sua vida e à vida de quem se viu sem emprego formal, sem trabalho informal e, principalmente, sem seus entes queridos.
Acredito que quase todas as famílias viram a Covid 19 de perto e que muitas famílias perderam entes queridos. No meu universo familiar, por exemplo, o SARS-CoV-2 se aproximou da família nuclear de uma das minhas irmãs: filho, nora e, também, o esposo. Todos estão bem, mas o esposo dela “mudou de plano” no dia 17 de maio de 2020, em plena pandemia, deixando-a desolada. Eles se amavam muito. Estavam juntos há 58 anos. Uma vida! Uma longa vida terrena.
O seu recomeço não tem sido mais difícil porque o acolhimento dos seus filhos, noras, netos e netas tem correspondido aquele abraço que lhe diz: nós a amamos e estaremos sempre ao seu lado.
Ela, com a sua resiliência, abraçou a criatividade, o que tem contribuído para ocupar o seu tempo e aliviar a sua dor, a dor da perda do seu esposo, a dor de não ter abraçado seus filhos que se encontravam em outra cidade e que não puderam ir ao enterro, pois esta tem sido a orientação da ciência. Sempre foi muito criativa, uma artista que nunca se sentou em nenhum banco para aprender a desenhar. No entanto, sempre foi dada a invenções como costurar, criar os designes dos vestidos para suas clientes, de acordo com o gosto delas, mas, com a situação vivenciada nesta pandemia, se viu, com maior intensidade, pintando até o sete.
Foi vivendo a sua dor que, dois meses depois da “mudança de plano” do seu esposo, em meados de julho do mesmo ano (2020), aceitou o convite de uma amiga espírita, que a apoiou muito naquele momento, para participar de uma instituição sediada no Rio de Janeiro, que ajuda pessoas necessitadas.
O que deveria fazer? Algo que jamais havia realizado: pintar Cds com restos de esmalte (daqueles que as mulheres costumam usar para pintar as unhas) e fazer o contorno dos desenhos com tinta dimensional. De posse destas matérias primas, sem ser prima, ela começou a pintar o que passou a chamar “mandalas”. Em 11 de outubro de 2020, ela enviou para mim, através do WatsApp, algumas fotos das “mandalas”. Todas belíssimas!

Depois, ela me contou ao telefone que havia pintado, num mesmo dia, muitas e muitas “mandalas”. Conversamos bastante e confirmei a data da partida do seu esposo. Juntas, concluímos que a sua produção tão criativa ganhou força diante da dor sentida, da dor velada, da dor que se perpetua, pois a dor da perda de um ente querido, de um ente muito próximo, é incognoscível, não podendo ser conhecida pelo uso da razão e/ou da inteligência. E mais, o tempo de duração da dor da perda não é cronológico, mas psicológico. Juntas, concluímos que a dor da perda que a deixou sem fôlego, que ativou um turbilhão de sentimentos, de lembranças, foi a mesma que a fez criar aquelas belíssimas “mandalas”.
É verdade! A dor tem esta dupla função: nos faz sofrer e, do sofrimento, criar apenas para sobreviver ou para viver, de forma saudável, o que a vida oferece.
Tem sido assim nesta quarentena: a criatividade tem salvado corações destroçados, tem tirado pessoas desempregadas do estado de inércia, tem sido motor para mudanças de profissões e, portanto, arma para a sobrevivência de grande parte da população brasileira. Sou testemunha de pessoas que se sentaram em cadeiras de uma faculdade, se diplomaram e, hoje, estão fazendo bolos, doces e tantas outras coisas, vendendo online, no prédio onde moram ou em qualquer outro lugar.
Quem diria que um dia, neste país do diploma, a criatividade estaria no comando da sobrevivência de muitas e muitas vidas, revestida das mais diferentes formas? Quem diria? Um viva à criatividade!
Caso o leitor queira citar este texto, deverá utilizar a referência como apresentada abaixo:
Referência
BRITO, Delva. Criatividade na pandemia Covid 19: homenagem à minha irmã, BA, 2021. Disponível em: https://www.delvabrito.com.br. Acesso em: dia mês ano (Ex.: 20 mar. 2021).